Há dias, a celebração de Quarta-feira de Cinzas lembrava-nos que a nossa existência se reveste de fragilidade: «Lembra-te que és pó!» Somos frágeis, sim, não só em contexto de guerra, onde isso é por demais evidente, como na doença, no nosso percurso profissional, nas nossas relações familiares e até nos nossos sonhos por cumprir. Mas somos feitos de uma fragilidade que nos torna também capazes de Deus e de uma solidariedade humana – como temos testemunhado nestes dias – que nos faz continuar a acreditar e a lutar pela construção de um mundo melhor.
Há um provérbio turco que diz que «O homem é mais duro que o ferro, mais forte que a pedra e mais frágil que uma rosa». Somos frágeis, precisamos uns dos outros como de ar para respirar, e não há nenhum mal nisso; precisamos que Deus nos guarde em todos os nossos caminhos, como cantamos no salmo, e ainda bem. Reconhecê-lo é o primeiro passo a ser percorrido - deserto adentro - para nos conhecermos interiormente. Uma pitada de verdade nas nossas vidas.
A Sagrada Escritura (note-se como o diabo conhece a Palavra de Deus) chama de tentações a essas tensões ou ambiguidades a que estamos sujeitos, e que ora revelam o que há de melhor ora o que há de pior em nós. Será o coração dos homens que fazem a guerra assim tão diferente do nosso? Negá-las, ignorá-las, ou diminuir o seu impacto na nossa vida seria ingénuo. Como é ingénuo achar que as tentações são algo que vem de fora. Não adianta trancar a porta quando o ladrão já está dentro de casa. O que é preciso é combatê-lo como Jesus.
Também Ele, partilhando da nossa condição humana, foi tentado, para com isso nos ensinar a deixarmo-nos conduzir pelo Espírito Santo. Jesus não fugiu às tentações, não as negou, atravessou-as! E venceu-as! Não é possível chegar à meta numa prova dos 100 metros sem a percorrer. Do mesmo modo, na vida espiritual, queimar etapas não nos prepara para o bom combate da fé nem para o encontro com Deus misericordioso. Quem queima etapas, isto é, quem não reza, quem não medita, quem não procura discernir a vontade de Deus na sua vida, quem não se abre à ação do Espírito Santo, não sai mais forte e, pelo contrário, a sua vida interior e o seu coração tornam-se uma confusão que mais cedo ou mais tarde nenhuma maquilhagem conseguirá esconder.
Mas as tentações não são um evento único, limitado no tempo, na vida de Jesus e na nossa, mas uma constante naqueles quarenta dias ou quarenta anos de toda a nossa existência, porque toda ela sujeita à contingência da nossa fragilidade e das nossas ambiguidades, mas ao mesmo tempo de preparação para algo radicalmente bom e belo, a Páscoa do Senhor e a nossa Páscoa.
Mal abre a boca, o Diabo mostra ao que vem: «Se és Filho de Deus...» Ele começa e acaba lançando dúvidas e tentando manipular a consciência de Jesus, como nós, quando dizemos a alguém apenas para obter o que queremos, como queremos e quando queremos: se me amas fazes isto, se gostas de mim fazes aquilo, se não queres que eu fique triste faz como digo, se não queres o mal dos nossos filhos vai ser assim..., se não queres ir para o inferno tens de ir à Missa, etc., etc. Manipulação diabólica das consciências.
Primeira tentação: «Se és Filho de Deus, manda a esta pedra que se transforme em pão», isto é, usa o teu poder, a tua influência, as tuas capacidades, para teu próprio benefício. Esquece os outros… que se desenrasquem… aproveita as oportunidades… transforma esta pedra em pão ou noutra coisa que gostes, aproveita a vida... Dava-nos jeito um deus que transformasse as pedras em pão e fizesse desaparecer todos os obstáculos da nossa vida. Mas, ao invés, sem nos dar receitas mágicas, Jesus ensina-nos a escutar a Palavra de Deus, a guiarmo-nos por ela, e a enfrentar, com Ele sempre a nosso lado, os desafios mais difíceis que a vida nos coloca, partilhando do nosso pão com quem não tem, usando as pedras do caminho para reconstruir casas, e transformando o ferro das armas em pontes que unam os povos.
Segunda tentação: «Eu Te darei todo este poder e a glória destes reinos, [...] se, te prostrares diante de mim e me adorares». Poder e glória. Não é o que tantas vezes procuramos, mesmo de forma camuflada? Ser adorados, dominar, estar acima dos outros, ser estimados e ouvidos por todos, ser ídolos para os outros, influencers? E, pelo caminho, não raras vezes diminuindo os outros, criticando justa ou injustamente o seu trabalho, as suas opções, a sua maneira de ser? Até na Igreja isso é o “pão nosso de cada dia”, pois se «com a boca se professa a fé para alcançar a salvação», como diz São Paulo, com a boca também se mostra o que abunda no coração de cada um, a violência da indiferença ou a vitória da compaixão. E como é fácil vender a alma ao diabo por “dois tostões”.
Terceira tentação: «Se és Filho de Deus - novamente o manipulador a falar - atira-te daqui abaixo. Ele dará ordens aos seus Anjos para que Te guardem». Fazer coisas espetaculares para garantir os nossos 5 minutos de fama? Ou assumir o papel de vítima para conseguir a atenção permanente dos outros? Poderia Jesus abusar da sua relação com Deus para o safar? Podemos nós? Quero um deus ao meu serviço como se fosse cão de guarda, sempre atrás de mim e do que eu quero, ou um Deus que me ensina a ser pessoa e a viver com dignidade segundo o Espírito?
Sem queimar etapas, Jesus atravessa as tentações uma a uma e vai saindo mais forte, sustentado na Palavra que sai da boca de Deus.
A maior tentação de todas é a de vivermos só para nós mesmos. Mas já vimos ao que isso leva, ao consumo irresponsável, ao egoísmo e à violência. À guerra, à loucura da guerra!
A alternativa seria a de uma vida pascal, florida, aberta ao transcendente, a Deus, e aos outros, para despertar em nós o amor, a amizade social e a fraternidade. E também já vimos ao que isso leva, a uma corrente incrível de solidariedade com o povo ucraniano e com todos os que sofrem.
Bendito seja Deus!
Leituras:
1ª: Deut 26, 4-10; Sal 90 (91), 1-2. 10-11. 12-13. 14-15; 2ª Rom 10, 8-13; Ev: Lc 4, 1-13