«Quem dizem as multidões que Eu sou?» Mateus e Marcos colocam esta pergunta no contexto do caminho. Lucas fá-lo no da oração, quando Jesus rezava.
A pergunta surge, portanto, não de uma alma doente que procura a todo o custo ser o centro das atenções mas de um diálogo “intra-trinitário”: é o Filho que se dirige ao Pai no Espírito Santo. E estavam com ele os discípulos, o que faz deste também um momento “comunitário”.
Jesus não lhes pergunta o que pensam as massas, se acham que Ele é ou não um grande mestre e pregador, mas o que dizem, o que afirmam, o que anunciam. Segundo eles, as multidões falam de João Batista ou de Elias, ou algum outro profeta ressuscitado, isto é, falam do passado.
Já para os discípulos, segundo Pedro, Ele é «O Messias de Deus», isto é, “O Cristo”, o ungido por Deus para cumprir o seu plano de salvação e libertação; “de Deus”, a presença divina que se torna no presente algo de absolutamente novo nas suas vidas.
A pergunta situa-se, portanto, entre o passado e o futuro. Tal como a contemplação da cruz.
A afirmação da Cruz, cruel, e da Ressurreição, como vitória sobre a crueldade, volta-nos para o futuro, tornando-se, então, fonte perfumada de novidade florida. A Cruz Gloriosa é o apelido da "esperança".
É a custo de "cruz", de lágrimas e gemidos, de dores e preocupações com o trabalho, os filhos ou contas para pagar, de noites mal dormidas, que o profeta Zacarias anuncia a renovação de Jerusalém e a nossa: Então «jorrará uma nascente para a casa de David», do coração d'Aquele que trespassamos brotará uma fonte de "água viva".
É, pois, preciso contemplar Aquele que trespassamos e falar com Ele. Melhor, deixar que no silêncio Ele nos fale ao nosso coração trespassado por tantas angustias.
Uma das personagens criadas por Shusaku Endo no seu livro Rio Profundo chama-se Mitusku, uma japonesa que «sentia uma repugnância visceral» pelo cristianismo. Não lhe dizia absolutamente nada aquele «homem seminu e macilento, cravado numa cruz suspensa» e dizia a Otsu, um colega de escola, cristão que pensava ser padre: «Tens de te libertar desse Deus».
Ela não encontrava qualquer sentido nas palavras que leu na Bíblia aberta à entrada da capela:
«… não tinha graça nem beleza
para atrair o nosso olhar
e o seu aspeto não podia cativar-nos.
Era desprezado, era a escória da humanidade,
homem das dores, experimentado nos sofrimentos,
como aqueles diante dos quais se tapa o rosto,
era menosprezado, nenhum caso fazíamos dele.
Na verdade, ele tomou sobre si as nossas doenças,
carregou as nossas dores...»
Foi muitos anos depois, junto ao rio Ganges, na Índia, que Mitusku reencontrou Otsu, vestido e vivendo como um pária, rejeitado pelos próprios colegas sacerdotes, mas entregue à missão de ajudar moribundos hindus a banharem-se naquele rio sagrado. Foi ali e no seu amigo, que carregava sobre si as dores da humanidade ferida, que ela reconheceu de forma mais evidente a presença d'Aquele «que não tinha graça nem beleza».
Em grego, cruz (staurós) significa estar preparado, estar de pé, firme, ser fiel até ao fim. Jesus não procurou a cruz cruenta mas a cruz da fidelidade, da vida comprometida em favor dos outros.
Por isso quando pensamos na crucifixão de Jesus não nos podemos ficar apenas pelo evento histórico da crucifixão mas é preciso acolher toda a sua cruz, isto é, a sua opção de vida em favor do Reino, uma vida aberta, feita de doação e de entrega.
«Se alguém quiser vir comigo, renuncie a si mesmo, tome a sua cruz todos os dias e siga-me». A cruz é uma opção, assumida livremente por Jesus e por quem o segue, a opção pelos pobres, pela justiça e pela paz…
Já o evento histórico da crucifixão foi imposto pelos poderes instalados, dos que vivem agarrados aos profetas do passado, às tradições, às frases feitas que não dizem nada aos crentes quanto mais aos não crentes, e tornam visível a crueldade de quem no seu imobilismo se fecha diante da novidade da vida de Jesus e do seu projeto de amor.
É por isso que nos encontros com os jovens eu não me canso de lhes pedir que façam a sua própria síntese de fé. Sem isso fica nada ou muito pouco.
«Renunciar a si mesmo» significa esvaziarmo-nos de nós mesmos, do nosso ego; sem isso é impossível viver em comunhão com os outros, especialmente os que sofrem, colocarmo-nos no seu lugar, compreender o que sentem.
Hoje impera uma visão egocêntrica do mundo. Tornamo-nos o centro e queremos que tudo gire à nossa volta. O círculo de amigos é composto por aqueles que nos elogiam, nos agradam, que são parecidos, que pensam do mesmo modo, que colocam “likes” nas mesmas publicações. Essa visão desumaniza pois rompe os vínculos fraternos. O outro serve enquanto me serve. E ao desumanizar torna-nos incapazes de acolher o outro enquanto "um outro" e, portanto, de acolher o Deus de Jesus Cristo.
Ainda ontem, dia 18, o Papa Francisco dizia aos Missionários Combonianos que quando começamos com esta «espiritualidade do espelho, deixamos de ir além e voltamos sempre para o nosso coração que está doente».
É, pois, preciso que morra em nós aquilo que não é vida. Não se trata de um processo de destruição mas de renovação, para permitir o crescimento do que de mais belo, verdadeiro e bom há em nós, que nos liberta e eleva.
A cruz de Jesus torna-se então consequência de uma opção radical em favor da vida e do amor.
Então poderemos, com propriedade, dizer: «Todos nós somos filhos de Deus pela fé em Jesus Cristo, porque todos nós, que fomos baptizados em Cristo, fomos revestidos de Cristo».
Senhor,
derrama também sobre mim
um espírito de piedade e de súplica.
Permite-me que chore conTigo na Cruz,
Te beije as mãos e os pés,
e me aninhe no Teu peito
como o discípulo amado.
Quero ser conTigo
e sem Ti não existir.
Quero ser com os outros
e sem os outros não existir.
Quero conTigo e com todos ser e viver.
Senhor, dá-me de beber
dessa água viva que jorra do Teu lado,
do Teu coração trespassado de amor por mim.
Nem sempre me lembrei de Ti.
Na verdade, sempre ocupado,
raramente penso em Ti.
Mas hoje «A minha alma tem sede de Ti».
Sim, sede!
Nem sempre Te consegui contemplar no santuário.
Nem sempre Te encontrei nesta igreja.
Na verdade, sempre ocupado,
raramente Te procuro.
Mas hoje, como Mitsuku,
descobri-Te nas margens de um rio profundo,
onde cabe a humanidade inteira.
Faz-me mergulhar de novo nessas águas
– num novo batismo.
E que nunca mais os meus lábios
falem de mim mesmo
mas cantem os Teus louvores.
Assim Te bendirei toda a minha vida
e em Teu louvor darei as mãos aos meus irmãos.
Porque Te tornastes o meu refúgio
unido a Ti e a todos estou, Senhor.
Amén.
Leituras:
1ª: Zac 12, 10-11; 13,1; Sal 62 (63), 2. 3-4. 5-6. 8-9; 2ª: Gal 3, 26-29; Ev: Lc 9, 18-24.