Neste domingo, a Palavra de Deus fala-nos da vocação de Isaías, de Paulo, de Pedro e de alguns discípulos. É Deus que chama. É a vida divina que clama à nossa miséria humana. E é o Homem que, justa ou injustamente, reclama e responde. A Bíblia está repleta de histórias vocacionais incríveis porque a vida é assim mesmo: cheia de encontros e desencontros com o Deus da vida.
Isaías afirma-se perdido, porque um homem de lábios impuros. Paulo reconhece-se indigno de ser chamado Apóstolo. Pedro sabe-se um homem pecador. Quem é chamado por Deus sente-se sujo, incapaz, demasiado fraco. Por essa razão é que Pedro diz ao Senhor: «afasta-Te de mim». Mas o Senhor não se afasta dele. É assim a dinâmica do sacramento da Reconciliação. A Isaías foi perdoada a culpa. Em Paulo trabalhou a graça de Deus. A Pedro foi dito «não temas». A mim, ajuda-me a respirar fundo todos os dias.
E o Senhor não só não se afasta de Pedro como lhe confia uma nova missão, que dá um sentido completamente novo à sua vida pois, se a sua misericórdia é maior do que o nosso pecado, a sua teimosia é maior do que os nossos medos: «serás pescador de homens». A tradução mais feliz do verbo dsogréo seria “reanimador”. Serás “reanimador de pessoas”, um despertador, tal como te sentiste agora desperto para a vida. E «eles deixaram tudo e seguiram Jesus».
Mas seguir alguém corresponde a escutar o que essa pessoa diz e imitá-la nas suas obras. Quando eu era miúdo, os meus pais não se cansavam de repetir: vê lá com que andas. É preciso ver com quem andamos, a quem seguimos, escutamos e imitamos. É preciso conhecer Jesus. Para que se abra um horizonte absolutamente novo diante de nós, como aconteceu com Pedro. Para que surja um sentido carregado de beleza que justifique arriscar, sair da segurança das nossas rotinas e mergulhar em profundidade. «A beleza salvará o mundo», escreveu Fiodor Dostoievski. Sim, a beleza de Cristo, desfigurado pela sua entrega aos Homens, salva-nos de uma vida adormecida, da letargia das sementes em inverno interior que se tornam uma noite quase sem fim.
Até que alguém, finalmente, repara nas redes vazias da nossa existência, sobe para a intimidade do nosso barco, nos pede para afastar de terra, do ruído e da confusão das margens em que nos movemos, a fim de vermos a nossa vida e a dos outros de outro prisma, em profundidade. E nos dá alento, apesar da derrota quase certa, a lançar novamente as redes, a não desistir, a tentar uma e outra vez, a adentrarmo-nos na vida, a aprofundar os problemas, a abraçar os desafios, a chorar, se necessário for, para lavar a alma e, em seguida, de felicidade porque tudo ou muito se aclara. Aumenta a confiança e renova-se a fé e a esperança.
Mas vamos voltar ao texto.
O espaço onde celebramos é lugar de partida e de chegada. Mas o lugar onde o Senhor nos chama à Missão é o mundo, com todos os seus perigos, representados pelo mar profundo no evangelho. Há apenas algumas décadas, havia um enorme compromisso social por parte dos católicos. Multiplicaram-se os cursos de cristandade, surgiram movimentos como a Ação Católica e a Juventude Operária Católica e associações com grande relevância como a Associação dos Juristas Católicos, a Associação dos Médicos Católicos Portugueses e a Associação Cristã de Empresários e Gestores. Surgiram ainda novas escolas e colégios católicos. Não era apenas um cristianismo com procissões e velas, como alguns querem fazer crer, mas um cristianismo que remava corajosamente mar adentro. Também hoje é necessária esta determinação.
O barco é a figura da Igreja e Jesus está sentado no barco pelo que, por muitas voltas que a gente dê ao texto, ou estamos com Ele no barco ou não estamos. Jesus envia-nos, é certo, mas vai connosco.
As redes vazias, que depois quase rebentam de tão cheias, são como a confiança de Pedro e a nossa, antes e depois de conhecermos verdadeiramente Jesus. Já a pesca abundante é sinal da plenitude do Reino de Deus.
Portanto, se por um lado não podemos deixar de rezar pelas vocações sacerdotais e à Vida Consagrada, como fizemos na semana passada, por outro, é preciso ter bem presente que o discernimento vocacional diz respeito a todos e, antes de mais, à vida.
Por isso, com Isaías, Paulo e Pedro, frágeis e cheios de medo mas, ao mesmo tempo, cheio de confiança e gratos porque o Senhor nos chamou e nos dá na doação de vida à sua imagem um sentido para a nossa existência, também nós dizemos: Senhor, «Eis-me aqui: podeis enviar-me». Serei teu despertador para a vida.
Leituras:
1ª: Is 6, 1-2a. 3-8; Sal 137 (138), 1-2a. 2bc-3. 4-5. 7c-8; 2ª: 1 Cor 15, 1-11 ou 1 Cor 15, 3-8. 11; Ev: Lc 5, 1-11