Leituras: 1ª Gen 2, 7-9 – 3, 1-7. Sal 50 (51), 3-4. 5-6a. 12-13. 14 e 17 R/ Pecámos, Senhor: Tende compaixão de nós. 2ª Rom 5, 12-19 ou Rom 5, 12. 17-19. Ev Mt 4, 1-11.
Na passada quarta-feira recebemos as cinzas, que nos recordam o que somos e de onde vimos. Que nos lembram essa ligação umbilical à terra, e a Deus, que faz florir vida nova até nos corações mais empedernidos.
Nesse caminho – entre a cinza e a cruz florida – o deserto. O deserto, afirma Pablo d’Ors, «porque é o lugar da possibilidade absoluta: o lugar em que o horizonte tem a amplitude que o homem merece e de que necessita.» (Pablo d’Ors, O Amigo do Deserto, Lisboa, Quetzal, p. 84)
«Jesus foi conduzido pelo Espírito ao deserto, a fim de ser tentado pelo Diabo» (Evangelho). Quarenta dias naquele lugar inóspito, conduzido pelo Espírito, mas tendo como companhia o ‘mafarrico’. Naquele mesmo lugar onde o povo de Israel foi percebendo a sua condição de povo da Aliança. Lugar de promessa e de negação. De núpcias, separação e reconciliação. Lugar de síntese.
Não nos iludamos! As tentações de Jesus são as nossas.
Primeira tentação: «Se és Filho de Deus, diz a estas pedras que se transformem em pães»
Um messias, fonte inesgotável de coisas, teria multidões atrás de si. Senhor, transforma esta pedra num telemóvel. Senhor, eu quero uma mota. Senhor, se me deres um bom salário e pagares todas as despesas seguir-te-ei para onde fores. O diabo sabe-nos ávidos por consumir e vestir a nossa nudez interior com ‘sete saias’ e ‘dois casacos’.
Quer que Jesus use o ‘pão nosso de cada dia’ como arma, mas, Jesus, prefere usar o seu poder para acreditar! Sim! Para acreditar na providência de Deus e acreditar que aparecerão muitos rapazitos com ‘cinco pães e dois peixes’ (Cf. Jo 6,9), capazes de partilhar com quem não tem. De mãos abertas para dar e receber, de braços abertos, como Ele na cruz, para acolher e entregar-se.
Música:
«Quanto esperei este momento. Quanto esperei que estivesses aqui
Quanto esperei que me falasses. Quanto esperei que viesses a mim
Sei bem o que tens vivido. Sei bem porque tens chorado
Eu sei o que tens sofrido. Sempre estive a teu lado
Ninguém te ama como eu. Ninguém te ama como eu
Olha pra cruz é a minha maior prova. Ninguém te ama como eu
Ninguém te ama como eu. Ninguém te ama como eu
Foi por ti só por ti porque te amo. Ninguém te ama como eu»
(Martin Valverde)
Segunda tentação: «Se és Filho de Deus, lança-te daqui abaixo, pois está escrito que os anjos cuidarão de ti»
Jesus, usa o teu poder para fazer milagres e dar espetáculo! Imagina Tu a voar! Fantástico! Eu gravo e publico no ‘Youtube’! Vou fazer de Ti um ‘influencer’ e o nome artístico está escolhido: Jesus Cristo ‘superstar’!
Mas, Jesus, não veio para dar ‘show’. Ele lança-se, sim, sem rede e sem medo aos nossos corações, que os seus anjos guardam. O Pai da misericórdia corre ao nosso encontro, pobres pecadores, e lança-se a abraçar-nos e a cobrir-nos de beijos. (Cf. Lc 15,20)
Música:
«Jesus Christ, Jesus Christ,
Who are you? What have you sacrificed?
Jesus Christ Superstar,
Do you think you're what they say you are?»
(“Jesus Christ Superstar” Orchestra)
Terceira tentação: «Tudo isto Te darei, se, prostrado, me adorares»
O ‘pai da mentira’, o ‘demónio’, quer que Jesus, como Filho de Deus, use o seu poder para manipular as pessoas. O ‘diabo’ promete coisas doces, apenas aparentemente boas, em troca de influências. Tu fazes-me isto, eu arranjo-te aquilo. Mas o açúcar não faz mal apenas aos dentes; também à alma, vendida a troco de uns trocos.
O ‘mafarrico’ exerce uma força na nossa consciência que, uma vez adocicada por ele, se torna difícil recuperá-la.
Música:
«Doce é sentir, em meu coração
Humildemente, vai nascendo o amor
Doce é saber, não estou sozinho,
Sou uma parte de uma imensa vida
Que generosa, reluz em torno a mim,
Imenso dom do teu amor sem fim»
(Claudio Baglioni)
A verticalidade de vida, com opções éticas muito claras, neste deserto de todos os dias, é uma forma nobre de entregar o nosso coração ao Senhor e só a Ele.
Cada vez mais pessoas se confessam dizendo que não têm nada a confessar, que não têm pecados. Isto é um sinal. Um sinal de que nos tornamos, cada vez mais, deuses de nós mesmos. A autorreferencialidade faz-nos sentir donos de tudo e de todos e, sobretudo, donos da verdade.
Adão e Eva sentiram essa tentação; a maior de todas: ser como Deus (1ª leitura). E, por vezes, há cristãos tão rígidos a defender Deus, como se Ele precisasse de defesa, ou a defender a doutrina, na sua interpretação pessoal, claro, que ‘enjaulam’ Jesus Cristo em esquemas muito, muito limitados. Mas um Homem do deserto não pode ser ‘enjaulado’. Ele deixa-se conduzir pelo Espírito, por isso, será eternamente livre!
E o que acontece a quem endeusa as suas ideias e formas de pensar e viver é que acaba despido (1ª leitura) como Adão e Eva, de tal modo despido que nem todas as folhas de figueira do mundo o conseguem cobrir. Porque despido por dentro, vazio, sem sentido, sem relação, fora do jardim, fora do paraíso, fora da relação harmoniosa com Deus, com a natureza e com os outros.
Felizmente, podemos contar a ajuda e a graça do Senhor (Cf. 2ª leitura), que atravessou e venceu este combate no deserto.
Retomando Pablo d’Ors, «Basta caminhar pelo deserto, só caminhar pelo deserto, para nos convertermos em alguém diferente.» (p. 160)