O itinerário quaresmal, com o seu apelo à conversão, não tem a penitência como um fim em si mesmo mas a atração para Deus. É a Cruz pascal, florida de misericórdia, que ao longe contemplamos, e cujo aroma já de algum modo sentimos. É a alegria da salvação, representada no rosa dos paramentos, que nos faz desejar cantar e dançar com o Deus da festa. Não aconteça ficarmo-nos pelos ritos, a lei e, sobretudo, uma certa ideia de Deus, um “pre-conceito” acerca de Deus, com certeza sempre distante da realidade divina.
Diz-nos o Evangelho que «os fariseus e os escribas murmuravam entre si», enquanto «os publicanos e os pecadores aproximavam-se todos de Jesus». Os primeiros, que se julgavam justos e santos, falavam sem ouvir. Era um diálogo de surdos. Os segundos, que se sentiam sujos e indignos, aproximavam-se em silêncio de Jesus para o escutar.
Os primeiros só se recebiam a si mesmos e aos que eram como eles. Mas, ao fecharem o seu coração aos publicanos e pecadores, julgando-os e condenando-os, fechavam-no também a Deus, ao Deus de Jesus Cristo. Os segundos sentiam-se acolhidos por Jesus, pela sua abertura e humanidade. A atitude dos primeiros repele; a de Jesus atrai porque a ausência de condenação já é possibilidade de relação, de caminho a percorrer em conjunto. A Quaresma está nisso. A nossa forma de rezar e de nos relacionarmos com Deus também. E é de oração e relação que nos fala a parábola contada hoje por Lucas.
Havia dois filhos. Ambos perdidos. Um longe, o outro perdido por casa. Ambos com uma ideia errada acerca do pai e acerca de Deus. O mais novo via no pai alguém que o impedia de gozar a vida e ser feliz. Mas a vida livre que procurou acabou por o deixar tão vazio interiormente quanto a carteira e a ter de disputar a comida dos porcos. Por isso, não porque esteja arrependido, volta para casa. No caminho treina o que vai dizer, frases feitas, orações repetidas vezes sem conta, mas é o pai que, «vendo-o, enche-se de compaixão e corre ao seu encontro». O filho ainda arrisca as desculpas esfarrapadas que tinha pensado, não sentidas, mas o pai é insistente no perdão, «cobrindo-o de beijos», vestindo-o com a roupa e a dignidade de filho, fazendo festa pelo seu regresso a casa.
Entretanto, regressou também o filho mais velho que, ressentido, não quis juntar-se à festa porque se achava justo e discriminado pelo pai. Nunca tinha ido para longe, mas a verdade é que também não estava perto. Não se dava conta de que, mesmo vivendo na casa do pai, há muito que estava perdido.
A igreja não é espaço para gente que se acha justa e santa, que com voz grossa reza a sua arrogância, mas para gente que, com humildade, se aproxima de Jesus, para o escutar, para aprender, para fazer caminho com Ele e, quando necessário, se deixar abraçar e beijar pela sua misericórdia e o seu perdão.
Numa paróquia onde trabalhei, à medida que os anos passavam, cada vez menos pessoas vinham à igreja celebrar o Sacramento da Reconciliação. A igreja enchia-se completamente ao Domingo para a celebração da Santa Missa, mas o confessionário estava quase sempre vazio. Numa semana da Quaresma, decidimos, então, ir à noite a cada uma das seis aldeias. Uma aldeia por noite. Em cada aldeia pedimos a um catequista que nos permitisse usar a varanda da sua casa e ali nos sentamos, com a discrição possível, a atender os penitentes. Nalgumas aldeias iluminados por velas, noutras por lâmpadas alimentadas por um pequeno gerador, autênticas multidões aproveitaram a presença do sacerdote para se confessarem. Alguns não o faziam há muitos anos. Nalgumas das aldeias atendemos pessoas até perto da uma hora da madrugada. Era visível a alegria do perdão estampada no rosto de cada homem e mulher.
Esta experiência fez-nos perceber que as pessoas simples da aldeia muitas vezes não se aproximavam da igreja por causa daqueles/as que andavam à nossa volta e que, em vez de mostrarem o rosto misericordioso de Deus, que a todos acolhe, se sentiam uma espécie de polícias da fé, criticando os outros por tudo e por nada, tanto pela roupa que vestiam, como por não saberem as orações longas e complicadas que aqueles/as sabiam.
Por vezes, somos como o filho mais velho, teimosos em achar que a conversão é coisa para os outros. Os outros é que têm de mudar. Os outros é que têm de se confessar. Não! Somos nós. Sou eu.
Mas, felizmente, Deus sabe esperar, pronto a perdoar e a fazer festa connosco no Céu.
Assim queiramos cantar e dançar!
Leituras:
1ª: Jos 5, 9a. 10-12; Sal 33 (34), 2-3. 4-5. 6-7; 2ª: 2 Cor 5, 17-21; Ev: Lc 15, 1-3. 11-32