A Coleção visitável EVANGELHO DA VIDA, inaugurada em 4 de janeiro de 2020, é um espaço museológico onde falamos da VIDA nas suas várias dimensões: física, natural, espiritual e cultural.
Hoje, fazemos memória do Holocausto, no aniversário da libertação do campo de Auschwitz em 27 de janeiro de 1945.
Para isso, juntamos o testemunho do rabino Rabino Elisha Salas (ex-rabino da Comunidade Judaica de Belmonte, Portugal, enviado de Askelon, Israel), em nome dos judeus ali presos e mortos; e de frei Fabrizio (franciscano conventual italiano a viver em Lisboa, confrade de Maximiliano Kolbe), recordando este santo, prisioneiro em Auschwitz, que se ofereceu para morrer na vez de um judeu, pai de família.
Auschwitz e Birkenau
Escrito por Rabino Elisha Salas
Ex-rabino da Comunidade Judaica de Belmonte, Portugal
Em junho de 2013, fui convidado pela organização Caminho Neocatecumenal, da Igreja Católica de Portugal, para fazer uma viagem à Polónia, juntamente com o Padre Ángel Bello Santamaria e Davide Alpori. Foi a minha primeira viagem àquele país e, por isso, a primeira vez que visitei os Campos de Concentração de Auschwitz e Birkenau.
A viagem foi coordenada de forma excelente pelos organizadores, e agradeço a atenção que me foi dada desde o primeiro momento. Obrigado por esta experiência. Certamente esta viagem envolveu-nos em muitos sentimentos passados: guerra, crimes, assassinatos, dor, lágrimas, esperanças… Perplexo perante tantas emoções, deixei-me guiar e acompanhar nesta viagem ao passado.
AUSCHWITZ
Quando entramos na Polónia e vamos para Auschwitz, é estranho: tudo parece muito arrumado, muito limpo, no seu lugar. É como aquelas viagens em que precisamos de um guia para nos abrir os olhos; mas, neste caso, levávamos a dor nas nossas almas. À entrada, o famoso letreiro, escrito em alemão, que queria encher de falsas esperanças quem passava por baixo: «o trabalho liberta». Explicam-nos que aqui havia sempre um grupo de músicos (orquestra judaica) a tocar lindas melodias, para que quem chegasse sentisse que finalmente chegava a um lugar diferente, talvez um descanso no meio do horror.
No dia da nossa visita havia muitas pessoas nos longos corredores, nos edifícios perfeitamente construídos. Como disse, tudo muito limpo… Se não soubéssemos, nunca imaginaríamos todo o horror que ali se tinha vivido. Pensar que, naquele lugar, mais de 1 milhão de pessoas foram assassinadas, entre judeus, ciganos, russos e prisioneiros de guerra… São números para os quais nas nossas mentes não têm capacidade de compreensão.
É impossível dimensionar o que ali aconteceu. Visitando os barracões dos dormitórios, onde se deitavam para passar a noite, visitando o forno crematório, percorrendo aqueles corredores impregnados de dor, ódio, desespero e da supremacia de um ser homem diante dos outros que não considerava com a mesma dignidade… Torna-se difícil aceitarmos respirar o ar daquele espaço. É difícil beber água naquele lugar, embora o calor seja sufocante.
BIRKENAU
Dali fizemos uma curta viagem de autocarro em direção a Birkenau. Chegados lá, fiquei surpreendido por ver tanta gente e um palco enorme erguido em frente a este campo de concentração, no qual não podemos entrar, mas apenas olhar através da cerca. Mais uma vez, tudo parece agradável e arrumado, mas sei que é um lugar sombrio e cruel no qual não quero estar.
Pouco a pouco, o evento começa a tomar forma. Juntamente com os meus companheiros de viagem, encontro um lugar privilegiado perto do palco, mas com um sentimento ainda confuso: vejo os edifícios do campo, e a minha imaginação regressa a Auschwitz e ao passado de milhares de pessoas rezando pelo dia em que a realidade mudasse, em que o mundo fosse outro. No palco, entra uma bela orquestra, composta por 120 músicos. No público, 12.000 cristãos e um grupo de mais de 40 rabinos de diferentes países, partilhámos a emoção de cantar em conjunto – homens, mulheres, católicos e judeus, todos juntos – o SHEMA ISRAEL.
Foi uma emoção indescritível. Ouvir os sons de tantos instrumentos musicais perfeitamente coordenados e olhar para Birkenau, recordar os milhares que ali sofreram e morreram, recordar a força e a brutalidade do ser humano, estando eu no meio dos meus dois amigos, o Padre Ángel e Davide Alpori, é reconhecer a grandeza do ser humano. Podemos cair muito baixo, e vir a sentir-nos superiores aos outros; mas Hashem, o único De’s, dá continuidade à vida, traz-nos de volta à realidade, à humildade, e posso ver isso aqui ao meu lado: mais de 12000 corações em que não há ódio. O ser humano não é assim, o ser humano não é mau.
E disse HaShem a Caim: «Porque te iraste, e porque descaiu o teu semblante? Se agires bem, não serás aceite? Mas se não fizeres bem, o pecado está à porta; e a ti é o seu desejo, mas tu podes dominá-lo» (Génesis 4,6-7).
As escrituras sagradas trazem-nos o primeiro caso de inveja e ciúmes, a análise do caso, e o conselho do Juiz para enfrentar o descontrolo destes sentimentos e dominá-los completamente; mas o relato continua, dizendo-nos que Caim não os pôde superar. Isto é para compreendermos que somos seres humanos, capazes de vencer e ter pleno sucesso; mas também de sermos derrotados por nós mesmos, e que não é fácil superar os sentimentos negativos que surgem das profundezas do nosso ser... Isto é: aceitar que, apesar de ser muito ético e fiel aos meus princípios, posso ser uma luz para os meus semelhantes ou, pelo contrário, algo pode falhar em mim e transformar-me, levando-me a realizar ações negativas que eu nunca esperei ver nos outros, muito menos em mim. Somos responsáveis pela nossa autoavaliação, que tem que ser constante.
«Aqueles que esquecem a sua história
estão condenados a repeti-la»
Então, o que podemos fazer com estes acontecimentos que existiram, que marcaram a história da humanidade? Que podemos aprender com toda esta tragédia que foi a Shoah? Apenas condenar os nazis? Procurar a culpa nos fornos, pelas paredes? Limitarmo-nos à eterna pergunta: Como é que isto pôde acontecer? «Aqueles que esquecem a sua história estão condenados a repeti-la.» Esta famosa frase, atribuída ao poeta e filósofo espanhol Jorge Santayana, está escrita na entrada do bloco 4 do campo de concentração de Auschwitz.
Qual história? A do ser humano. A minha, a nossa. É nosso dever conhecer o passado e projetar-nos para o futuro, tentarmos melhorar, educarmo-nos, mantermos os nossos valores internos, humanos, sociais e espirituais firmes e claros, de modo a que possamos defendê-los quando estiverem expostos à fragilidade.
«Não te vingarás nem guardarás rancor contra os filhos do teu povo, e amarás o teu próximo como a ti mesmo. Eu Sou Hashem» (Levítico 19,18).
Estar presente, estar ou não de acordo, é nosso direito e podemos manifestá-lo (não guardar rancor). Mas temos que aceitar que todos procuramos um lugar na vida, que todos temos as mesmas necessidades, temos que procurar crescer e ajudarmo-nos uns aos outros, aceitar que isso não nos priva de nenhuma oportunidade; pelo contrário, se todos encontrarmos o nosso lugar, todos podemos melhorar a nossa condição e sermos melhores seres humanos, e isto consegue-se mais facilmente quando reconhecemos, respeitamos e valorizamos o «outro» que a vida traz para junto de nós, quando nos revemos no nosso próximo.
A minha gratidão ao Caminho Neocatecumenal, ao Padre Angel e a Davide, por essa tremenda experiência, e pela bela e sincera amizade que mantemos desde então.
Askelon Israel, 11 de Shvat de 5781 (24 de Janeiro de 2021)
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MAXIMILIANO MARIA KOLBE
uma luz no inferno de Auschwitz
Escrito por Frei Fabrizio Bordin, ofmconv.
Em 27 de Janeiro – aniversário da libertação do Campo de Concentração de Auschwitz-Birkenau (27 de janeiro de 1945) –, celebramos o Dia Internacional da Memória da Shoah, uma data para lembrar a memória de milhões de vítimas provocadas pelo genocídio da Alemanha nazi e a necessidade de combater o antissemitismo, o racismo e qualquer outra forma de intolerância que possa levar à violência.
Um dos seis milhões de vítimas nos campos de extermínio nazis foi Maximiliano Maria Kolbe, um franciscano conventual que, no inferno de Auschwitz marcado pelo ódio, «conseguiu a vitória mais difícil e maior: a do amor que perdoa» (São João Paulo II).
Escolhi esta foto para o apresentar, a última, que lhe foi tirada em 1940, pela KennKarte (documento de identidade de base utilizado durante o Terceiro Reich). Maximiliano aparece sem a longa barba, despido do seu traje franciscano e, sobretudo, com um olhar de mansidão que será a sua verdadeira identidade no campo de concentração.
Batizado no mesmo dia do nascimento, 8 de janeiro de 1894, na Polónia, com o nome de Raimundo, vive a sua infância numa família pobre, mas muito religiosa e trabalhadora. Em 1910 entra, ainda adolescente, na Ordem dos Franciscanos Conventuais, assumindo o nome de Maximiliano. Aluno brilhante, continuou os seus estudos em Roma e a sua relação especial com Nossa Senhora.
Em 1917, ainda estudante de Teologia, juntamente com outros seis jovens frades, funda a Milícia da Imaculada, como reação ao anticlericalismo e com a intenção de evangelizar o mundo tendo a Virgem Maria como intermediária.
Regressado à sua terra natal em 1922, Maximiliano, após alguns anos de apostolado, através de uma revista mariana por ele iniciada, funda a «Cidade da Imaculada», em polaco ”Niepokalanów”, um centro de comunicação social cristã em que chegaram a viver 672 religiosos. Em 1930, vai para o Japão, a fim de fundar a mesma obra e difundir, num país onde o catolicismo estava quase completamente desconhecido, a devoção a Maria. Nasce em Nagasaki a «Cidade da Imaculada» japonesa, “Mungenzai no Sono”. Em 1936, regressa a Polónia.
Em 1939, dia 1 de setembro, com a invasão repentina da Polónia pelo exército alemão sob o comando de Hitler, rebenta a II Guerra Mundial. Os nazis começaram a prender e deportar judeus e, com eles, outros grupos étnicos e líderes católicos. Os quase setecentos frades que viviam em Niepokalanów foram dispersos. Os nazis procuraram convencer Maximiliano a colaborar com eles, e o frade até podia valer-se do nome do seu apelido de origem alemã, Kolbe. Mas ele recusou e foi preso uma primeira vez a 19 de setembro de 1939. Libertado, juntamente com outros frades, e regressados à cidade da Imaculada, começaram a dar abrigo a refugiados, judeus e a qualquer outra pessoa perseguida pelos nazis. A 17 de fevereiro de 1941, Maximiliano foi preso novamente e nunca mais voltou para Niepokalanów. Despediu-se dizendo: «Irmãos, não esqueçais o amor!»
Foi levado para o campo de trabalhos forçados de Auschwitz. Para os nazis era apenas o número 16670, mas para os prisioneiros Maximiliano destacava-se pela sua mansidão. Sigismundo Gorson, um judeu que sobreviveu, deixou este testemunho.
«Tinha treze anos e vinha de uma bela casa, onde o amor era uma palavra-chave. De repente encontrei-me órfão e só no inferno de Auschwitz. Padre Kolbe foi para mim como um anjo e como uma mãe galinha me pegou nos braços. Enxugava as minhas lágrimas. Ele sabia que eu era judeu, mas isso não fez diferença: amava a todos e dava amor, somente amor. Distribuía uma porção tão grande das suas rações que foi um milagre para mim que ele continuasse vivo… era um príncipe entre os homens.
Muitos iam ter com ele para se confessar ou para receber conforto. Graças ao exemplo dos outros, eu também, de noite, rastejando no chão, aproximei-me de Maximiliano. A saudação foi tocante. Trocámos algumas palavras sobre a impressão que metia o crematório. Ficámos em silêncio. Depois disse-me: “O ódio não é uma força criadora. Só o amor é uma força criadora… Essas dores não nos vão quebrar, mas devem-nos ajudar a sermos fortes. São necessárias para que os que vierem depois sejam felizes”.»
Um dia, um prisioneiro do campo fugiu. A lei era conhecida: dez deles teriam sido sorteados para morrer à fome num subterrâneo. Maximiliano não foi sorteado, mas saiu da fila para se oferecer em lugar de Francisco Gajowniczek, um pai de família. Único sobrevivente do grupo, Maximiliano resistiu por quinze dias à fome, à sede, ao desespero na escuridão do cárcere. Confortava os companheiros, os quais, um após outro, aos poucos sucumbiam. Morreu com uma injeção de fenol que lhe administraram. Era o dia 14 de agosto de 1941. O seu corpo foi queimado no dia seguinte, forno onde eram lançadas as centenas de corpos de judeus, ciganos, homossexuais, deficientes físicos e mentais, padres e religiosas e muitos outros da inteligência considerados opositores do regime nazista.
Por todo o campo espalhou-se a voz da generosa oferenda deste homem que tinha oferecido a sua vida em prol de um outro ser humano.
«Demo-nos conta – testemunhou mais tarde Jorge Biellecki, ex-prisioneiro de Auschwitz – que alguém de nós, naquela escura noite espiritual da alma, tinha elevado a medida do amor ao nível mais alto. Um estranho, um como qualquer outra pessoa, torturado e privado do seu nome e da sua posição social, tinha-se prestado a uma morte horrível para salvar alguém de que nem era seu parente. Portanto, não é verdade, gritávamos, que a humanidade é lançada e pisada na lama, esmagada sem esperança. Milhares de prisioneiros convenceram-se de que o mundo continuava a existir e que os nossos carrascos não podiam destruí-lo. Mais de um indivíduo começou a buscar esse mundo, essa verdade dentro de si, para encontrá-la e compartilhá-la com os outros camaradas do acampamento e apoiavam-se um ao outro para lutar contra o mal. Afirmar que o Padre Kolbe morreu por um de nós ou pela família daquela pessoa seria redutivo. A sua morte foi salvação de milhares de vidas humanas. Nisto, posso dizer, está a grandeza daquela morte. É isto que sentimos. E, enquanto vivermos nós que estávamos em Auschwitz, inclinaremos a nossa cabeça em memória daquilo que aconteceu, assim como inclinámos a cabeça diante do bunker da fome. Aquele foi um choque que nos restituiu o otimismo, que nos regenerou e nos deu força. Ficámos sem palavras com o seu gesto, que se tornou para nós uma explosão de luz muito poderosa, capaz de iluminar a noite escura do acampamento.»
Maximiliano Kolbe foi beatificado pelo Papa Paulo VI em 1971 (há 50 anos) e canonizado pelo Papa João Paulo II, em 1982 (presente em ambas as celebrações Francisco Gajowniczek, o homem que ele salvou). Poucos dias depois da sua beatificação em São Pedro, o Papa Paulo VI disse: «Se o grande patriarca São Francisco pela sua conformidade a Cristo mereceu tornar-se o “Crucifixo do monte Alverne”, Maximiliano Maria Kobe, com o sublime holocausto da sua vida, identificou-se a Cristo no ato supremo da caridade.» E o Papa João Paulo II no dia da canonização do seu conterrâneo apresentou-o ao mundo como o “patrono do nosso difícil século” (o século XX).